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Ainda a Severa

A Severa foi uma peça de teatro muito celebrada no seu tempo e que ainda forneceu argumento para o primeiro filme sonoro português...Para os monárquicos: quem quizer ouvir o hino nacional da Monarquia, o chamado Hino da Carta (letra e musica de D. Pedro IV), veja o filme e esteja atento à entrada de Suas Majestades na corrida de touros. A Severa subiu à cena em 1901. Havia apenas 55 anos que a Severa tinha morrido e havia ainda bastantes homens em Lisboa que tinham ido com ela para a cama mediante pago. A meretriz (como então se dizia) fadista tinha deixado fama e recordações. Quando Julio Dantas fez dela uma cigana houve um murmúrio, mas passou à conta de liberdade poética. Mas quando Dantas lhe dá na peça como amante o Conde de Marialva o murmúrio passou a burburinho. Toda a gente sabia em Lisboa que o amante fidalgo da Severa fôra D. Francisco de Paula Portugal e Castro, 13º Conde do Vimioso, falecido em 1865 aos 48 anos. A família Vimioso também o sabia - e sabia o que o resto de Lisboa calculava mas não podia afirmar: que o Conde, alem de amante de uma prostituta, fôra em vida um indivíduo perverso e um debochado cujas quase unicas virtudes tinham sido uma coragem trauliteira e bem tourear a cavalo. Sabedores que Dantas ia pôr em cena a vida da fadista, os filhos do Conde tiveram receio que a vida pouco limpa do pai aparecesse em palco e pediram ao Rei; e este pediu a Hintze Ribeiro ( o que deu nome à caída ponte de Entre-os-Rios e era então Primeiro Ministro); e este chamou Dantas. Julio Dantas era muito flexível (conseguiu ser monárquico, republicano, afonsista, sidonista e por fim salazarista - um percurso difícil mas, como êle provou, não impossível...) e o ultimo Marialva, D. Pedro José Vito de Menezes Coutinho tinha morrido em 1823. O Vimioso passou a Marialva, os Vimiosos respiraram de alívio e a plateia riu baixinho... Maria Severa Onofriana nasceu em Lisboa, possivelmente na Madragoa, em 1820, filha de uma ovarina, mulherona de grandes carnes enfeitada a colares e brincos de oiro e de um contrabandista, morto a tiro na fronteira. Lisboa em 1820 é uma aldeia. O Rossio, sem teatro, nem estátua, nem estação, é um terreiro de terra batida onde carros de bois se cruzam com os burros dos saloios e os cavalos dos fidalgos. Onde hoje está o Martim Moniz é a Mouraria Baixa: ruas estreitas, becos, casas térreas poupadas pelo terramoto. As mulheres andam cobertas até aos pés pelo capote, o rosto tapado por um lenço. Por toda a parte se vêem frades e soldados, as portas das igrejas estão coalhadas de mendigos. Cães vadios fazem a limpeza das ruas de terra batida onde uma vala, cavada junto às casas, serve de esgoto. É para essa vala que se fazem os despejos: lá vai água...O Sol queima e as moscas picam. Todos os dias há procissões. Ao lado do Rossio é o mercado ao ar livre onde à sombra de uma figueira gigantesca esperneiam os leitões e se debatem as galinhas à espera de panela. A figueira dará o nome à praça e é nela que a mãe da Severa tem o seu lugar de venda e é aí que a miúda vai crescer durante os anos do miguelismo e da guerra civil. Em 1838 moram já ambas na Rua Suja que depois se chamará do Capelão, à entrada da Mouraria Alta, por cima do Arco do Alegrete. Severa tem 18 anos. É alta, delgada mas não magra, carne branca com cabelos e olhos pretos, boca pequena. Há um retrato,desenhado a tinta da China por Francisco Metrass: peito abundante, porte altivo. Já se prostitui, mas durante um tempo vive de casa e pucarinho com o Chico do Alegrête, carpinteiro e fadista. Fadista é um estilo de vida: noitadas, vinho, zaragatas e navalha à mão. O fado é apenas adereço. Do Chico salta para o Vimioso que a não tira da vida: é seu amante ao mesmo tempo que ela cobra para ganhar a vida. Larga o Conde e vive algum tempo com um rapaz ourives na Rua do Terreirinho. Mas não se aguenta e volta para o Conde, para a vida airada e para os favores ( a pagar) a quem a procura...À sua volta, figuras cujos nomes são romances: o Ceguêta taberneiro, o Janaz, o Matias Ranhoso,o Zé dos Riscos, o Padreca, o Preto do Borratém...E as outras, as colegas: a Luisa Saloia, a Isabel de Aveiro, a Leonor...A actriz Letroublon, ídolo de Lisboa...As corridas no Campo de Santana, as paródias fora de portas, no Ferro de Engomar...E a mão sempre pronta para o estalo nas ventas de quem abusasse. O cigarro - mas não o vinho: não bebia. E finalmente o fado: no alto da tipóia, no banco da taberna, começa a dar forma a essa melopeia que ainda não era nada entre o lundum e a modinha. O Fado da Tareia, o do Desejo da Morte. Seria a voz? Seria a forma de cantar? Não saberemos nunca. Mas foi pela garganta dessa prostituta barata com uma vida cheia mas curta que o fado entrou na vida dos lisboetas. Até ao dia 30 de Novembro de 1846. Tinha 26 anos e uma tuberculose. A seu pedido expresso foi enterrada na vala comum do Alto de S.João. "Quando eu morrer, raparigas/Não tenham pezar algum/ E ao som das vossas cantigas/Lancem-me à vala comum..."

http://pt.livra.com/item/a-severa/8858625/

Comentários

  1. Parabens por tão lindo espaço...O fado é a nossa essencia e fiquei comovida por ter aqui encontrado tão bem expressada essa essencia.
    Bem haja.

    Ana Mestre

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PRIMEIRO ACTO Um café de lepes*, na Mouraria, à entrada da rua do Capelão. Coito de bolieiros. alquiladores, marchantes e marafonas. Á esquerda alta, uma escadinha, dando para a sôbre-loja onde o Conde de Marialva tem um quarto alugado. Balcão à direita. Porta ao fundo com três degraus de pedra, deitando para a viela. Sôbre uma mesa, uma guitarra. SCENA I O ROMÃO, tipo de alquilador, alentejano, jaleca de astracan, calça de balbutina, espora num pé só, conversa com DIOGO, a uma das mesas da direita baixa. O MANGERONA, moço de café, cara alvar, segue do balcão a conversa. O CUSTÓDIA, pobre diabo epilético, aleijado de um pé, a cara arrepanhada pela cicatriz duma queimadura, ri sózinho, assentado num banco da esquerda baixa, a contar moedas de prata que vai descosendo do fôrro da véstia. Júlio Dantas - A Severa (peça em quatro actos) * Lepes - Moeda de dez réis. Entenda-se café muito popular. Foto - Tipos populares na Rua do Capelão. Arquivo Municipal de Lisboa

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