Ainda hoje não está resolvido o mistério da origem do Fado. Há quem veja nele um traço da presença árabe na Península, quem o julgue derivado da boca dos trovadores medievais e quem lhe descubra uma relação com o folclore do Norte de Portugal, ou ainda com as toadas dos pescadores no mar alto. Mas a tese mais credível associa-o às cadências africanas levadas pelos escravos para o Brasil - onde deram lugar a uma forma próxima, o lundum - , daí transportadas para Portugal em princípios do século XIX. Nos anos 30, o musicólogo inglês Rodney Gallop resolve a polémica escrevendo que é a «síntese, estilizada por séculos de lenta evolução, de todas as influências musicais que afectaram o povo de Lisboa».O que importa, na verdade, é que o Fado está há muito identificado como a música singela do bas-fond lisboeta, da vida equívoca dos seus bairros populares, da fauna das suas tabernas, casas de pasto e prostíbulos. Como o próprio nome denuncia, o Fado é feito de resignação, de uma sorte madrasta, de uma vida sem esperança, de uma tragédia mansa. As suas letras, impregnadas de sentimentalismo, melancolia e saudosismo, lidam com a marginalidade e a boémia, os amores frustrados e os abandonos, as roturas familiares e a morte.
Durante a primeira metade do século XX subsistiu o Fado “castiço”, o fado vadio cantado de improviso em tascas, por vezes à desgarrada, por gente de profissões proletárias ou incertas, a que aparecem associados proxenetas, prostitutas, vadios e aventureiros. Este cenário irá incomodar os algozes do Estado Novo e da Ditadura, que chegam a regulamentar em 1927 as actuações ao vivo, abrangendo todo e qualquer recanto onde se cante o Fado, por mais discreto que fosse. Nessa regulamentação estipulava-se uma licença oficial para se poder cantar, a qual só podia ser obtida através da apresentação de um registo criminal limpo. Por outro lado, todas as letras tinham de ser sujeitas a censura prévia, restringindo-se a diversidade de temas abordados e eliminando-se a práctica do improviso.
Os novos meios de comunicação sonora vão por seu turno contribuir para multiplicar a audiência do Fado, mas também para conformá-lo à dimensão de uma canção normal, que coubesse na face de um disco de 78 rotações. Na rádio, mais uma vez, a censura é rigorosa, produzindo-se uma selectividade de músicas e intérpretes. Na rota da crescente audiência do Fado devido à revista popular, o primeiro filme sonoro português é dedicado à mais lendária das fadistas: “A Severa” (1932), de Leitão de Barros.
A partir do final dos anos 30, princípios dos anos 40, o Fado torna-se um género musical de enorme popularidade, muito para lá das fronteiras da capital, com ídolos como Ercília Costa, Berta Cardoso, Hermínia Silva e o mais mítico dos fadistas: Alfredo Duarte, dito o “Marceneiro”. A sua apresentação faz-se agora em casas da especialidade, espaços que muitas vezes se designam como “retiros”, “adegas” ou “tavernas” para reclamar autenticidade mas que se querem respeitáveis e que fazem alarde da sua frequência distinta, desde diplomatas a pacatas famílias da classe média. Fixam-se os instrumentos do Fado (guitarra e viola, com suporte da viola-baixo) e codifica-se a sua execução, com o contributo de populares tocadores como Armando Freire (o “Armandinho”) ou Georgino de Sousa, ambos falecidos na segunda metade dos anos 40.
As fadistas ritualizam a execução com um xaile que se torna obrigatório, enquanto Marceneiro impõe a roupa preta. Em Lisboa, torna-se um must para o turista visitar uma casa de fados, decorada com típicos motivos “castiços”, agora recuperados para consumo burguês. Mas para além da casa de fados tradicional, o Fado começa a ouvir-se em todo o lado: cafés, esplanadas, restaurantes, solares, colectividades e auditórios, sempre com um público entusiástico e apreciador.
Acima de qualquer outro, um nome é responsável por esta consagração: Amália Rodrigues. Revelada ainda em 1939, Amália imprime às suas interpretações uma tensão, um dramatismo e uma convicção até então desconhecidos. Cedo se torna numa espécie de rainha da noite de uma Lisboa que se diverte enquanto a Europa é destruída. Inicia pouco depois uma fulgurante carreira internacional, que levará o nome de Portugal aos quatro cantos do mundo. Com Amália, o Fado é agora, depois do vinho do Porto, o melhor produto de exportação português. A partir dos meados dos anos 50 o Fado começa a intelectualizar-se, apesar de continuar a preservar uma faceta de índole marcadamente popular. Cruzando influências musicais e culturais diversas, começa a usufruir dos novos públicos que o teatro de revista, a rádio, a gravação em disco e o cinema, progressivamente lhe trazem. O seu trajecto confunde-se com a evolução da própria cidade lisboeta e da sua população. A poesia dita erudita descobre o universo fadista pela mão de figuras literárias tão proeminentes como David Mourão Ferreira, José Régio, Pedro Homem de Mello, Luíz de Macedo, Alexandre O’Neill, Cecília Meireles, José Carlos Ary dos Santos, Manuel Alegre, entre tantos outros. Mas a entrada da poesia no Fado não foi pacífica, houve críticas, como recorda Carlos do Carmo, um dos principais responsáveis pelo engrandecimento do género: «Cheguei a ter receio disso, mas hoje estou-me nas tintas. Nunca o fiz na tentativa de ser o menino transgressor, antes por acreditar que vale sempre a pena seguir em frente.» Em mais de 40 anos de carreira Carlos do Carmo construiu um repertório de figuras tão distintas como Teixeira de Pascoais, Pedro Támen, António Lobo Antunes, Fernando Pessoa ou Camões.
Felizmente, este relacionamento da poesia com o Fado manteve-se até aos nossos dias e deu os seus frutos. Hoje, as novissimas gerações já não prescindem do adorno da poesia para as melodias que entoam: basta ouvir-se Ana Moura, Camané, Cristina Branco ou Mariza para percebermos que o Fado percorreu um longo caminho desde os seus tempos de vadiagem. Agora que se estreia em Portugal o já aclamado filme-documentário “Fados”, de Carlos Saura, cujo argumento se resume à trilha sonora composta por várias vertentes do Fado, Rato Records achou oportuno iniciar mais esta colecção, intitulada “Variações do Fado”, que irá reunir as vozes do passado e do presente, as versões clássicas e as modernas, num desfile de perspectivas diversas sobre o género. E faço minhas as palavras do realizador espanhol: «Adoro o fado porque está marcado pela saudade, pela melancolia. Nasce da despedida, de quando a gente partia para as colónias e segue vivo pelo sentimento, como se comprova vendo os fadistas cantarem de olhos fechados. O fado é força, é sincero e honesto, e expressa o sentimento do carácter português». E agora, silêncio...
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